sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sobre água e carros

"Alô, quem fala?"

"Não importa."

"Hã? Quem fala?"

"Só preciso de cinco minutos."

"Sim, mas preciso saber... Espera aí, é você?"

"Não importa."

"Agora tenho certeza que sim."

"Pode ser, mas não importa, quero apenas cinco minutos."

"Como conseguiu meu telefone e por que a essa hora?"

"Telefone, não importa. A hora, estou com sede."

"Sede? Mas do que diabos...?"

"Não gosto nem preciso tomar água, mas se serve de desculpa, o determinismo biológico diz que estou com sede."

"Se for você mesmo e se eu estiver acompanhando o raciocínio, porque simplesmente não conversou com um estranho na rua, ou com o caixa do supermercado? É você mesmo?"

"Vejo que continuas a mesma. Se sou eu, já disse: não importa. Quanto a conversar com estranhos, costumava ser suficiente, mas desde de que bebi de uma água específica, os intervalos de sede se tornaram cada vez menores e insaciáveis."

"Se ainda acompanho, estás a falar de paixão? saudade?"

"Paixão é algo humano, o que sinto está mais para 'dependência química'. Saudade é sentir falta e querer de volta; sinto falta apenas."

"Impossível sentir falta e não querer de volta, ver novamente"

"Compraste um carro novo e sente falta do antigo. No entanto não queres o antigo de volta."

"Sabe, eu gosto de você..."

"Mesmo que fosse verdade, impossível gostar de alguém em apenas uma conversa e ainda mais se for tão louca quanto essa e isso não tem haver com água ou carros."

"Se essa for a primeira vez que conversamos..."

"E se eu for quem achas que sou..."

"Já teria desligado caso contrário..."

"Acho que já é o suficiente, cherie."

"Então é isso, ficamos por aqui e... como? cherie?! eu sabia que era v..."

Já passara os cinco minutos e era mais do que o suficiente. Desligou o celular que voltou a tocar insistentemente algumas vezes. O toque foi friamente escolhido e a música o ajudou a dormir. Não bebeu mais daquela água desde então, sabia como era perigoso saciar-se duas vezes na mesma fonte.

No supermercado

Nota: as frases em parênteses referem-se a pensamentos. Em aspas, falas.

18:30
O supermecado, que costuma ser um sítio agradável, está abarrotado de pessoas. Bem, é sair na chuva e não querer se molhar.
Pulando as partes chatas de: esbarrar nos outros e ter que pedir desculpas; crianças mal-criadas gritando; Idosas perguntando o preço de produtos e ter que escutar problemas de estranhos na fila quilométrica, chegou ao caixa.
Era uma jovem bem maquiada. Cabelos pretos presos e olhos de peixe morto com olheiras. Apresentável até mesmo para um caixa de supermercado.

"Boa noite, senhor. Cartão da loja?"

Seria a rotineira e chata pergunta, se não fosse pelo fato de que a voz da simpática caixa ser extremamente normal.

"Não." (Quantas vezes terei que repetir...)

"Trinta e dois reais e quarenta e quatro centavos."

"Débito." (Idiota... eu sei ler...)

"Sabe, hoje é meu último dia aqui. Vou ser transferida para outra unidade..."

(Sim, e o que tenho haver com isso?) "Hmm... sério?"

"Sério..."

(Já não basta na fila? E agora no caixa... bah...) "Então... Chey...anne, achaste melhor ou pior?" (Que nome!)


"Hã? Como sabe meu nome? Ah... o crachá..."

(Idiota...)

"Bem, não queria sair daqui... mas fazer o que?"

"Longe de casa?"

"Não, mais perto..."

"Salário menor?"

"Não, maior... Pode retirar o cartão."

"Ah, obrigado. Então..."

"Eu não sei..."

(Hmmm... respostas interessantes... parece ser interessante... mais um pouco e descubro onde mora e o telefone. Pode ser que me sirva depois. O que? Mas o que...?? Estás maluco??) "Bem, Cheyanne, boa sorte no novo lugar."


"Obrigado pela atenção. Boa noite."

O que essas pessoas tem em comum? Não era a primeira vez que vinham se "confessar" a ele. Claro, não se achava especial por isso, muito pelo contrário, seria a pessoa menos indicada para ouvir outras. Odiava, mas faz parte das convenções sociais...

Na saída, viu um bar cheio de pessoas e agradeceu por ter ido ao um supermercado cheio de pessoas.

domingo, 18 de abril de 2010

Quando criança

"Quando criança, contentava-se com as coisas mais vis: pedras fúngicas, insetos pegajosos ou tampinhas enferrujadas...
Quando criança, ficava feliz em achar cinquenta centavos na beira da calçada...
Quando criança, não se sentia só e se se sentisse, criava amigos para fazer-lhe companhia...
Quando criança, as horas se passavam lentamente e cada segundo era aproveitado de forma suada e suja...
Quando criança, havia-se inúmeras coisas para se descobrir, até mesmo o que nem se quer vá um dia existir...
Quando criança, todos os problemas, além de fácil resolução, pareciam ter um solução...
Quando criança, os doces eram doces...
Quando criança..."

"Crianças são idiotas."

Pensou, enquanto rasgava mais um texto e concluía que já era tarde, muito tarde.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Miseralvemente infeliz

Foi uma noite incomum. O castelo de sombras em que se escondia estava falho e deixava entrar, por não se sabe onde, raios de luz viscerantes e, de repente, sentiu-se incomodado por aquilo que antes costumava fazê-lo tão mesquinhamente feliz: a solidão.
Sim, ela mesma, dá paz, alívio e inspiração. Alimenta os pensamentos mais nuviosos.

Saiu. O clima úmido daquela noite escaldante fez lembrá-lo de odiar ainda mais aquela fétida cidade.
Encontrou-se com uma meia dúzia de sócias¹ (nada relevante por se tratar de uma mera convenção social, a exemplo das tantas outras relações que era obrigado a manter) e foram ter no local marcado. O objetivo dele no entando era outro: sentir o quanto era macambúzio.
Observou a todos ao seu redor e viu como buscavam desesperadamente por algo que fizesse sentido. Alguns provavelmente nem sabiam onde estavam, outros se agarravam a uns e bizarrices do gênero.

Foi quando teve certeza de suas teorias mais peculiares e sentiu-se prazerosamente infeliz.
Qualquer um que se considere "normal" ao ler textos, presenciar, ou até mesmo ser o protagonista de situações desta natureza, sentir-se-ia de forma oposta "a ser feliz".
Se ser feliz é sentir-se bem, concluiu, por mais paradoxal e sem sentido que possa parecer, que a infelicidade o fazia feliz. Era um infeliz feliz.

Voltando aos acontecidos locais, desempenhou com louvor as convenções sociais solicitadas e, até por assim dizer, divertiu-se no evento.

"Rodeado de pessoas e senti-se só"

A clichê e famosíssima frase não veio por acaso. Serviu para concluir e coroar a noite que a pessoa por trás de tão bela frase, era um gênio, embora não tivesse o sentido aqui colocado por ele. Concluiu que era uma arte.

E sentiu-se mais uma vez só, exctasiado consigo mesmo, miseravelmente infeliz!


¹termo equivalente a "amigo"

Versando sobre coceiras

Era algo que incomodava, tipo uma coceira.
Realmente coçava, e passava. Sempre.
Era assim que ele se sentia em relação a uma tal de saudade.

Foi quando, em uma despedida em seis pra treze, sua mãe disse:

"Quando ficares, vais entender."

Acomodado na desconfortável poltrona do fundo, confortavelmente pensou:

"Eu já fiquei."

E concluiu que as mães também erram. Nem sempre, mas erram.